domingo, 13 de julho de 2008

Meu Maracanã


Hoje* eu joguei bola com alguns meninos aqui no prédio vizinho. Dois moleques, com talvez metade da minha idade. E o pior: perdi. Ainda mais que isso, fui pego no contrapé da memória. Aquela pelada despretensiosa, com uma bola surrada e de gomos descosturados pelos pontapés dos meninos, me trouxe à memória um tempo que, por qualquer motivo, andava de mal com minhas recordações.

Faz mais de dez anos, minha vida era jogar bola. Antes de ir pra aula e depois do dever de casa, tudo o que eu queria era jogar futebol. Eu morava no prédio onde até hoje meu avô mora, e que ainda preserva uma quadra que deve ter uns 4m de largura por 6m de comprimento. Em suma: minúscula. Digo que preserva porque ela, de fato, ainda existe, apesar de estar quase toda coberta por pedras, tijolos e outras coisas que me sugerem uma reforma ou possível interdição. Apesar do pouco espaço, aquela quadra já viu protagonizados dribles suntuosos – quase nunca meus -, arrancadas intermináveis para as quais o pouco comprimento da quadra não configurava uma ameaça, carrinhos impetuosos e incontáveis brigas.

Era assim: dia de domingo, as grades que separavam nossa arena do resto do prédio ficavam pequenas pra tanta gente. Ninguém queria decepcionar a platéia. As partidas começavam, de um lado uma barrinha era formada por duas sandálias e, do outro, o portão estreito fazia o papel da outra trave. E naquele pouco piso de cimento, marcava-se como Gamarra, driblava-se como Denílson e chutava-se como Romário. E nem que por alguns efêmeros minutos, éramos todos eles, várias vezes eles, diante de nosso público cativo. Nossa quadrinha era o nosso Maracanã.

Hoje quando eu vejo aquele pequeno estádio tomado por pedras e martelos, a lembrança que me ocorre é a de Totó, em Cinema Paradiso, que após décadas, retorna à sua cidade e vê o cinema que usava freqüentar, quando criança, transformado em um estacionamento. Hoje, as recordações daquela quadra pesam pra mim muito mais do que as toneladas de pedra depositadas em seu piso. Todos os dribles ainda estão ali, exatamente da mesma maneira como foram executados originalmente. E nesse universo de cimento e ar, eu me recordo – não sem saudade – de um tempo em que diante de tais dribles não restava, como hoje, pedra sobre pedra.


*02/12/2007.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Devaneios breves de um homem de idade

Era fim de tarde quando abri um envelope que me chegou pelos correios, ainda de manhã, e que há muito repousava sobre o tapete de minha porta. Confesso que logo fui tomado por calafrios: a essa altura da vida, a morte nos chega até pelos correios. Deparo-me com uma dessas cartas-convite para um evento, cujo intuito era celebrar os 50 anos de formatura da minha turma de medicina. Olhei o convite, estudando-o como se estuda um inimigo, fitando-o com parcimônia e certo receio. Sou avesso a cerimônias dessa natureza. Penso – para ser sincero – que não há muito a celebrar. O acontecimento não deixa de ser meio mórbido. Uma porção de velhos – porque é isso que somos – discutindo sobre os assuntos que temos em comum: morte eminente, cirurgias do coração, câncer de próstata, derrames, ausência de vida sexual, ataques fulminantes, cirroses e comida sem sal. Os netos são os únicos sopros de vida. O destino não me concedeu a graça de tê-los.

Sou um homem amargo. A viuvez e o falecimento de meus dois filhos em um acidente de trânsito motivaram minha reclusão. Não saio de casa com freqüência. Meus passeios se resumem ao transcurso diário à padaria ao fim da tarde, onde compro o jornal e tomo café. Vez por outra um maço de cigarros, embora reconheça, como médico, que o hábito é extremamente desaconselhável. Não dirijo. Não porque minha idade já não permita – fiz uma cirurgia de catarata há alguns meses. A vida é pródiga em seus ensinamentos: a velocidade é jovem e não me cabe, portanto, contrariá-la. Um homem da minha idade deve evitar correr riscos. Sei que a descrença não cai bem em alguém que já vive o epílogo de seus dias, mas às vezes acredito que Deus joga dados.

Larguei o convite sobre a mesa da sala, como se esperasse por meu veredicto, e pus-me a ler o jornal de ontem – já tão aposentado quanto eu – como geralmente faço após as refeições. Tenho uma pilha de jornais velhos na terceira gaveta, de cima pra baixo, da minha mesa de cabeceira. Talvez devesse os dar a algum mendigo ou pra alguém que tenha cachorro. Há algo curioso sobre os cães: dizem que para se ter a idade de um cachorro correspondente a de um humano, basta multiplicar por sete. O que significa que se eu fosse cachorro eu teria pouco mais de dez. Mas, enfim, não sou cachorro, embora já tenha me passado pela cabeça ter um. Dirigi-me, em seguida, ao banheiro, um percurso que já me parecera menos longo, em outros tempos. As sandálias, como que presas ao piso, crepitavam num barulho rouco e preguiçoso. Fixei o olhar em meu reflexo no espelho do banheiro, enquanto escovava os dentes carcomidos pelos anos: a face límpida de outrora deu lugar a uma aparência descuidada, assumo, com a barba por fazer e os cabelos desgrenhados.

De volta à sala, passei os olhos pelos nomes presentes na lista de convidados. O nome de Vera é acompanhado por um generoso in memoriam em letras garrafais e douradas, como certamente não foram seus últimos dias: há alguns anos, foi consumida por um câncer desses que já aparecem em estado terminal. Posso me lembrar com clareza de como estava vestida quando a vi pela primeira vez, sentada ao fundo do bonde que partia do bairro das Laranjeiras e ia costurando a cidade. Miúda, do lado esquerdo, lendo alguma coisa, talvez Oscar Wilde ou Rimbaud (lembro de ter me recitado graciosamente L’Éternité em algum de nossos encontros amorosos no meu apartamento, ao som do saxofone de Charlie Parker), vestia uma saia que não lhe permitia mostrar as belas coxas que cultivava, e que tive a honra de conhecer como até então ninguém conhecera; uma blusa que lhe desenhava com clareza sua silhueta e lhe deixava nus os ombros. Seu olhar atencioso passeava sereno por entre as páginas, enquanto o mundo girava desapercebido. Não sei se por dois minutos ou duas horas – nesses momentos, o tempo parece ser destituído de qualquer matéria ou lógica e passa a ser uma entidade de caráter contemplativo – me postei ali, a meditar diante da ternura destilada por aquela pequena. Conservou a mesma graciosidade até seu último alento; até que sua morte se abatesse sobre minha carne e minha alma.

Numa avaliação breve desses 50 anos, penso que o único saldo positivo talvez esteja na minha conta bancária – que não é tão farta, mas me permite uma vida razoável, sem os percalços que acometem a maioria dos aposentados. Ainda assim não tenho quaisquer luxos, sou um homem de hábitos simples – da mesa solitariamente posta ao meio dia, à cama de solteiro cuidadosamente arrumada para minhas noites de insônia e viuvez, tenho minha rotina rigorosamente regrada, não por disciplina ou organização, mas pelo vazio que impera em meus sentidos e em minhas horas e que me faz ter a certeza de que o dia terminou; pela ausência que me foi imposta e sobre a qual se edificou minha morada, minha vida.

Vesti um suéter enquanto procurava – um pouco às cegas devido à penumbra cultivada pelas persianas fechadas – um guarda-chuva: o jornal prometia um dilúvio. Meu aspecto de Noé conferia uma aura bíblica a uma curta caminhada até a padaria, a dois quarteirões de meu lar, amargo lar. Ainda tive tempo de ter ecoando em meu pensamento as memórias de minha falecida esposa, a quem devo todas as lembranças que remanescem em minha memória desses anos perdidos no tempo e no espaço, apagados pela conjunção de fatalidades que constituem minha vida; mutilados pela sentença de solidão perpétua que me foi proferida pelo destino.

Abro a porta, não sem empreender algum esforço. Hoje quando chegar em casa após meu passeio vespertino, vou me postar novamente diante do convite, dimensionar possibilidades, verificar data, local e hora; consultar novamente a lista, relacionar os nomes aos poucos rostos que ainda guardo em minha memória. Depois, então, vou cortar os cabelos, fazer a barba e vestir o paletó reservado para as grandes datas. Porque o tempo corre, eu sei, e logo também serei memória.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A viagem


O planejamento da viagem data de um tempo bem diferente, não tão distante; um ou dois meses atrás, se muito. Lúcia tratou, meticulosamente, de todos os pormenores referentes às passagens, hospedagem, roteiros, casas de câmbio, roupas de frio e discos de Carlos Gardel ou Astor Piazzola – com a pronúncia graciosamente puxada para o italiano. Acatei humildemente todas as suas resoluções para a viagem, em parte porque meu trabalho no escritório não me permitia muitas horas vagas, em parte porque me agradava ver Lúcia assim autônoma e ocupada, a despeito de sua secular incapacidade de atravessar sozinha uma avenida mais larga ou pagar quaisquer de nossas contas no banco.

Mas isso foi antes – como eu já disse. Foi quando, num lampejo súbito de sei lá o que, num poço de cólera e cansaço sepultou nosso quase-casamento e em cuja lápide rabiscou qualquer coisa sobre rotina, não me lembro agora; em seu jardim, não nascerão flores, que não exalarão perfume de flor de almíscar, não serão regadas pela chuva nem pelas lágrimas que, torrencialmente, não desabarão sobre elas. Gritava; e disso é tudo o que me recordo.

A viagem, entretanto, ficara de pé como não ficaram meus ossos. Malas arrumadas, no dia marcado, parti em direção ao aeroporto. Estava lá: esguia, talvez com uns quilos a mais dos que seus inexoráveis 60kg, um cigarro apagado balançando entre os dedos finos, batendo os pés impacientemente contra o piso, o pescoço enlaçado por um cachecol, como que já esperando pelo frio que também a aguardava, silenciosamente, em Buenos Aires. Não lembro com clareza se chegou a me cumprimentar: reclamou da barba por fazer e da minha pouca bagagem, sem esconder um riso contido, enquanto eu lentamente desfalecia a cada sílaba que lhe fugia da língua e me golpeava, ganhando matéria incandescente dentro dos meus ouvidos.

Caminhamos juntos até o avião onde, lado a lado e por algumas horas, comungaríamos do mesmo ar rarefeito. Falou, pausadamente, que conseguira transferir minha hospedagem para um hotel a algumas quadras do local em que, inicialmente, nos acomodaríamos – e onde agora ela reinaria absoluta em seu leito não mais conjugal. Consenti. Mostrou-me mapas, mudanças de planos, exposições de arte, praças, cafés, livros de fotografia, luvas de inverno, guias práticos sobre como aprender o espanhol com desenvoltura em alguns minutos, revistas especializadas em culinária argentina – tudo isso antes que o avião pudesse mover seus pés sobre o solo e desprender-se num vôo tímido e suave.

Os fones no ouvido mantinham-na num transe permanente, passeando serena por entre as nuvens, desafiando serafins e toda a hierarquia dos anjos. Lamento não servirem uísque nos vôos diurnos, Lúcia abre um sorriso, lamenta algumas coisas não mudarem nunca. Saboreia com igual simpatia cada uma das páginas da revista que lê, celebridades no Taiti, desabrigados na Ásia, atentados no Oriente Médio, relançamento da obra de Hemingway em Paris. A aeromoça anuncia pouso para a troca de aviões em algum lugar que, a essa altura, não faz a menor diferença. Descemos. Vou ao banheiro, digo a ela.

Os aeroportos são iguais em qualquer parte do mundo, tanto faz estar em Tóquio ou em Madrid. Tão logo chego ao toalete, os auto-falantes internos do aeroporto avisam embarque imediato, portão 20. Penso em voltar, me oferecer para carregar sua bagagem de mão, seus livros de culinária, luvas, mapas, revistas, quem sabe carregá-la, Lúcia, com seus 60 e poucos quilos bem distribuídos, segurar com toda força seu braço, arriscar um beijo. Não.

Passei em frente a uma livraria; ao longe, Lúcia me fez um sinal enquanto sumia através do portão de embarque. Segunda chamada. Pensei em filhos, pescaria com netos que teriam medo de lagartas de fogo, Lúcia espreguiçada sobre a cadeira onde faria bordados, almoços de domingo. Pensei, por último, em Buenos Aires, com seu tango e seu falso ar europeu.

Última chamada. Corri, soltei a bagagem de mão e simplesmente corri, corri, corri, não sei por quanto tempo, corri como quem não deseja chegar, como quem parte, talvez tenha fugido, corri como que estilhaçado em pequenos fragmentos de mercúrio, morri como quem corre, como quem não corre, como quem valsa, como quem anseia por não chegar a lugar algum.

Peguei um táxi em frente ao saguão do aeroporto. Ainda tive tempo de ver, pelo retrovisor do carro, a imagem do pássaro de concreto decolando para, só então, se perder na imensidão azul do céu.