terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Tempestade

A tempestade sempre foi uma questão de tempo, é o que mamãe dizia. Temia-se porque se desconhecia, mas, no fundo, todos nós a esperávamos, como a esperaram nossos bisavós, nossos avós, nossos pais. Mamãe profetizava enquanto fumava um fedorento cigarro de palha, que exalava um odor acre por nossa casa e que seria capaz de se espalhar por toda a vizinhança se acaso algum desavisado sopro de vento tomasse de assalto as ruas abafadas e estreitas de Vila Olímpia.

Não se sabia se vinha para mal ou para bem, embora eu acreditasse que mamãe encontrava-se mesmo entre os que enxergavam nela propriedades purificadoras. Deitada na rede improvisada em frente ao quintal de casa, discorria sobre os dias e noites – conforme rezava a tradição – em que os céus desabariam num temporal jamais visto, e então não haveriam telhados capazes de suportar tamanha cólera e cada palmo de chão e terra seria lavado antes que, sobre eles, pudessem ser novamente erguidos os pés de Vila Olímpia.

A despeito disso, nada havia em nossos dias que não exalasse um bucolismo absolutamente peculiar, dias que se seguiam em um compassado, lento e interminável cortejo. As missas, às quartas-feiras e aos domingos, regulavam e resumiam a vida social de Vila Olímpia, tecida por sobre a onisciência de todos nós sobre tudo o que acontecia – ou não acontecia, mais precisamente – na cidade. Então eram exaustivamente discutidos assuntos de toda natureza – da celebração do padre às traições da esposa do padeiro.

Atrás de igreja, um descampado se estendia para além das montanhas. Era o local onde, na época, eu e as outras crianças soltávamos pipas que se elevavam até onde eu supunha ser o céu. Um dia trovejou alto, dizia-se que importunávamos os céus com nossas pipas coloridas e que viria então a tempestade e todos se recolheram em suas casas e pusemo-nos a rezar longos terços e as mães a lamentar os filhos e os filhos a lamentar as pipas, que lamentavam o céu negado. Mas a tempestade não veio. A partir desse dia, então, trocamos nossas pipas pela brincadeira de bola e, posteriormente, por peões que nós mesmos fabricávamos com a madeira que sobrava da marcenaria.

A mocidade se revelou indócil para com meus planos de estudar leis na capital, diplomar-me advogado como fizeram alguns em Vila Olímpia – os que tomaram promissor o caminho dos trens ao invés do paralítico e impermanente caminho dos rios. Mamãe logo adoeceu dos rins me revogando o direito aos estudos, e dediquei-me a trocar-lhe os curativos duas vezes ao dia – pela manhã e à noite – além de fazê-la tomar os remédios que, não raro, ela obstinadamente se negava a ingerir. Repetia para si mesma, como um mantra, que se aproximava a tempestade, durante os anos que lutou contra a doença que aos poucos lhe consumiu também o fígado, o pâncreas, e os pulmões. Troquei os livros pelo cimento infiltrado nas unhas, pela cal descascada das paredes a me disfarçar a pele queimada de sol, por essa terra seca e estéril que cada vez mais acredito amaldiçoada.

Nunca deixei de pensar em nossa tempestade, nem mesmo quando mamãe e os outros antigos de Vila Olímpia morreram e então assunto foi progressivamente se diluindo na memória coletiva. Nem mesmo quando nasceu Moisés, meu menino, reabilitando o incessante ciclo de morte e vida a que estamos eternamente subjugados.

Hoje espero ainda que venha a mim – com vista minguante e cansada de ver nascer e morrer mais de sessenta primaveras, com os dedos incorrigivelmente feridos e os braços fadigados de empunhar enxadas e pás, com os lábios rachados e a boca seca pela ausência que a tempestade causou em meus dias. A tempestade é o contrário da vida. Sei que chega e não posso me furtar a adivinhar-lhe o cheiro de sal; sei que chega – como se antevê um adversário pelo silêncio, como se anuncia o temporal pela calmaria.

Deitado nesta cama, o nariz a expelir o sangue quente que, creio, será lavado assim que suas águas limpas vierem, aguardo que me leve, de braços abertos, peito inflado e de olhos fechados para que eu a imagine da maneira que melhor me convém.

Sereno, aguardo meu dia.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Panis et Litteris

Fausto se movia pelos corredores de seu apartamento, como que procurando as idéias em qualquer canto escondido da casa, debaixo de um tapete, por entre os pratos, atrás das cortinas. O apartamento era espaçoso, de dimensões largas o suficiente para alguém sobre cujas costas não recaíam as responsabilidades de abrigar uma companheira, um parente ou sequer um cão. A sala de estar se desenhava firme no centro da casa distinguindo-se pelo seu minimalismo – uma mesa de vidro com quatro cadeiras dispostas de maneira quase desordenada; à esquerda, as persianas pendiam, marrons, pelo contato com a claridade, sobre a janela. Passeava ele, inquieto, por entre os ambientes, estalando os dedos como quem anseia por uma epifania.

Então punha-se em meditação sobre a janela, esperando que a qualquer momento uma combinação astral ou qualquer movimentação na rua lhe incutisse o desfecho que deveria ter o livro que há alguns meses escrevia. Pensou, por um instante, em Maria Lúcia. Não fosse tarde – e sabendo dos hábitos absolutamente regrados de sua companheira – faria uma ligação, talvez ajudasse a espairecer a mente. Maria Lúcia lhe dedicava visitas regulares, sempre aos fins de semana, quando dividiam apartamento, quarto, respiração; dividiam seus espaços interiores, chego às vezes a acreditar que eram um só, quando consumidos por uma espécie de febre embriagante, se dispunham de uma maneira tal que aos olhos menos atenciosos seria difícil precisar onde começam e terminam seus contornos individuais.

Ouviu, então, um ruído surdo vindo de qualquer lugar na cozinha, algo como o som de uma porta fechando amortecida. Deslizou por entre móveis até mapear de onde vinha o som, agora constante. O impacto da visão chegou, por um momento, a assombrar: sentada absorta no chão da dispensa, desnuda, parecia uma criança bem alimentada, não obstante devorasse indiscriminadamente páginas de um jornal antigo. Não possuía sexo que a distinguisse, de modo que parecia pertencer a qualquer uma dessas ordens angelicais. Mantinha a cabeça baixa, absolutamente concentrada em sua tarefa, sem desviar a vista por um segundo que fosse, não percebendo sequer o observador que um pouco adiante espiava, incrédulo, seus movimentos . Apesar de apressados, seus gestos não escondiam alguma inocência, e não havia ali qualquer consciência do errado. Página após página, o jornal desceu garganta abaixo e antes que Fausto pudesse perceber, já não havia ali nada senão silêncio.

Na noite que se seguiu, procedeu cerimoniosamente como tratasse de um ritual: empilhou alguns jornais sobre o tapete da dispensa, deixando a porta encostada para que pudesse entrar – embora, em verdade, não acreditasse que aquela criatura utilizasse de quaisquer métodos ortodoxos para chegar ali. Dirigiu-se ao quarto, em seguida, e embora as idéias lhe incorressem desordenadas, pôde escrever algumas páginas antes que os ruídos denunciassem a chegada de seu mais novo inquilino.

O terceiro dia de visitas reservava algumas novidades. Foram necessários menos de 10 minutos – tempo que Fausto precisou para buscar algumas correspondências na portaria do edifício – para que toda a sessão de Literatura Inglesa de sua biblioteca fosse devorada, de Joyce a Shakespeare, tudo o que restou foi um fino exemplar de Allan Poe, casualmente esquecido por entre autores latino-americanos. Não tardou, porém – ainda que tivesse, inutilmente, trancado a sala com todas as chaves e trancas possíveis – para que todos os Nerudas e Cortázares enveredassem pelo mesmo esôfago. A avidez com que tudo aquilo fora consumido sugeria que, a partir de então, o trabalho não era mais executado individualmente, mas por vários deles que, em frenesi, faziam de cada cômodo um imenso refeitório.

Foi quando se espalharam por toda a casa, suas visitas já não constituíam discretas aparições sobre o chão empoeirado da dispensa. Estavam em toda parte agora, intermitentemente, saciando a loucura com fotos antigas, certidões de nascimento, documentos de identidade, diplomas, dicionários, listas de compras, devoraram todo o dinheiro laboriosamente economizado e guardado dentro de envelopes, posteriormente também digeridos. Uivavam, em gozo, enquanto se esquivavam pelos corredores à procura de um pedaço de delírio. E então o encontravam em cartas que ou o apreço conservou, ou que a falta de coragem silenciou. Comeram, finalmente, cada uma das páginas que, amontoadas sobre a escrivaninha, – entre rascunhos e versões definitivas – davam matéria e espessura ao romance que, terminado, se lançava como único registro a unir o tempo presente a algum passado agora desconhecido.

Telefonou para Maria Lúcia, disse que não viesse essa noite. Suas mãos tremiam, enquanto, em meio à devastação, tentava levar, sem êxito, uma colher de sopa à boca.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

O Eclipse


“Tudo o que consigo pensar é que, durante o eclipse, provavelmente até os sentimentos ficarão parados". (Michelangelo Antonioni)

Sabia que era a última vez em que nos veríamos. Nada que houvesse sido combinado ou conversado, nenhuma despedida arranjada. Não haveria despedida, embora se soubesse uma despedida. Não haveria adeus embora se soubesse o adeus encerrado em cada um dos gestos, na ausência das palavras, no cansaço, o adeus. Não se tratava do fim assinado em contratos, divórcios, ratificado em segundas vias; era, antes de tudo, o fim escrito nas faces devastadas, no amor mal-feito, o fim sem endereço.

Marie ela se chama. Tem o semblante altivo disfarçado pelos traços recatados de seu rosto, os cabelos negros que pendem na altura dos ombros, emoldurando-lhe a face alva; se ergue por sobre pernas longas, costas em que posso notar tracejadas cada uma de suas vértebras e um ventre que sempre me negou filhos. Tudo em Marie é assim: em aço e dor, uma construção imponente, orgulhosa; cheia de si, de sua decadência, da solidão intolerável que ostenta nos olhos.

Posso ver com nitidez o exato momento em que Marie abre a porta de minha casa com cópia da chave que possui. Vejo me abraçar, despir-se logo em seguida, sem pronunciar uma só palavra. Afasto suas pernas com meus joelhos, pressiono seu tórax contra o meu, enquanto se ajusta anatomicamente dentro da cama de solteiro. Posso vê-la acoplada à minha cintura – como uma extensão de mim – enquanto, repetidamente, desmorona e se reergue sobre meu corpo; contrai, distende cada um de seus músculos agora exaustos. Seus movimentos têm ritmo, cadência e, embora desafiem princípios da física, metafísica, lógica, retórica, gramática, posso sempre prever o próximo movimento, como posso sentir seu perfume adocicado envolver o espaço, preenchendo e violentando seus intervalos mais curtos, entre uma respiração e outra.

Por alguns minutos, fica estendida, em fadiga, como um animal abatido. Então recompõe-se dentro de seu vestido azul-marinho com a mesma destreza com que dele se desfez. Passeia pelo quarto, procura por suas sandálias. Sei que não nos veremos mais, não como amantes. Tudo em Marie é assim: devastação. Não trocamos uma única palavra, não convém trocar. Caminha suavemente até a porta, pisando com os calcanhares descalços como não desejasse fazer barulho, calça as sandálias. Acena com a cabeça. Até a próxima é tudo o que diz. Não haverá próxima, eu sei e ela sabe, mas também não convém dizer. A essa altura, talvez toda a cidade saiba da nossa ruína, através do nosso silêncio ensurdecedor que corta a noite como uma navalha.

Sobre mim há pouco ou nada a dizer. Que importa meu nome, minha idade, a cor cinza de meus olhos? Não importa com o que trabalho, como ocupo minhas horas vagas, que jornal leio, minhas convicções políticas, se detesto cigarros, nada disso importa diante do fato de que há pouco Marie atravessou a porta à frente da qual me posiciono agora – ingenuamente esperando que volte, que bata à porta, diga que esqueceu as chaves e eu possa então arrastá-la novamente até a cama, possuí-la, esgotá-la, ordenar que fique.

Mas não acontecerá assim, não durante o eclipse. Então digo que vá, Marie, cuide para não adoecer nessa chuva, volte qualquer dia para um café, adeus.

domingo, 13 de julho de 2008

Meu Maracanã


Hoje* eu joguei bola com alguns meninos aqui no prédio vizinho. Dois moleques, com talvez metade da minha idade. E o pior: perdi. Ainda mais que isso, fui pego no contrapé da memória. Aquela pelada despretensiosa, com uma bola surrada e de gomos descosturados pelos pontapés dos meninos, me trouxe à memória um tempo que, por qualquer motivo, andava de mal com minhas recordações.

Faz mais de dez anos, minha vida era jogar bola. Antes de ir pra aula e depois do dever de casa, tudo o que eu queria era jogar futebol. Eu morava no prédio onde até hoje meu avô mora, e que ainda preserva uma quadra que deve ter uns 4m de largura por 6m de comprimento. Em suma: minúscula. Digo que preserva porque ela, de fato, ainda existe, apesar de estar quase toda coberta por pedras, tijolos e outras coisas que me sugerem uma reforma ou possível interdição. Apesar do pouco espaço, aquela quadra já viu protagonizados dribles suntuosos – quase nunca meus -, arrancadas intermináveis para as quais o pouco comprimento da quadra não configurava uma ameaça, carrinhos impetuosos e incontáveis brigas.

Era assim: dia de domingo, as grades que separavam nossa arena do resto do prédio ficavam pequenas pra tanta gente. Ninguém queria decepcionar a platéia. As partidas começavam, de um lado uma barrinha era formada por duas sandálias e, do outro, o portão estreito fazia o papel da outra trave. E naquele pouco piso de cimento, marcava-se como Gamarra, driblava-se como Denílson e chutava-se como Romário. E nem que por alguns efêmeros minutos, éramos todos eles, várias vezes eles, diante de nosso público cativo. Nossa quadrinha era o nosso Maracanã.

Hoje quando eu vejo aquele pequeno estádio tomado por pedras e martelos, a lembrança que me ocorre é a de Totó, em Cinema Paradiso, que após décadas, retorna à sua cidade e vê o cinema que usava freqüentar, quando criança, transformado em um estacionamento. Hoje, as recordações daquela quadra pesam pra mim muito mais do que as toneladas de pedra depositadas em seu piso. Todos os dribles ainda estão ali, exatamente da mesma maneira como foram executados originalmente. E nesse universo de cimento e ar, eu me recordo – não sem saudade – de um tempo em que diante de tais dribles não restava, como hoje, pedra sobre pedra.


*02/12/2007.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Devaneios breves de um homem de idade

Era fim de tarde quando abri um envelope que me chegou pelos correios, ainda de manhã, e que há muito repousava sobre o tapete de minha porta. Confesso que logo fui tomado por calafrios: a essa altura da vida, a morte nos chega até pelos correios. Deparo-me com uma dessas cartas-convite para um evento, cujo intuito era celebrar os 50 anos de formatura da minha turma de medicina. Olhei o convite, estudando-o como se estuda um inimigo, fitando-o com parcimônia e certo receio. Sou avesso a cerimônias dessa natureza. Penso – para ser sincero – que não há muito a celebrar. O acontecimento não deixa de ser meio mórbido. Uma porção de velhos – porque é isso que somos – discutindo sobre os assuntos que temos em comum: morte eminente, cirurgias do coração, câncer de próstata, derrames, ausência de vida sexual, ataques fulminantes, cirroses e comida sem sal. Os netos são os únicos sopros de vida. O destino não me concedeu a graça de tê-los.

Sou um homem amargo. A viuvez e o falecimento de meus dois filhos em um acidente de trânsito motivaram minha reclusão. Não saio de casa com freqüência. Meus passeios se resumem ao transcurso diário à padaria ao fim da tarde, onde compro o jornal e tomo café. Vez por outra um maço de cigarros, embora reconheça, como médico, que o hábito é extremamente desaconselhável. Não dirijo. Não porque minha idade já não permita – fiz uma cirurgia de catarata há alguns meses. A vida é pródiga em seus ensinamentos: a velocidade é jovem e não me cabe, portanto, contrariá-la. Um homem da minha idade deve evitar correr riscos. Sei que a descrença não cai bem em alguém que já vive o epílogo de seus dias, mas às vezes acredito que Deus joga dados.

Larguei o convite sobre a mesa da sala, como se esperasse por meu veredicto, e pus-me a ler o jornal de ontem – já tão aposentado quanto eu – como geralmente faço após as refeições. Tenho uma pilha de jornais velhos na terceira gaveta, de cima pra baixo, da minha mesa de cabeceira. Talvez devesse os dar a algum mendigo ou pra alguém que tenha cachorro. Há algo curioso sobre os cães: dizem que para se ter a idade de um cachorro correspondente a de um humano, basta multiplicar por sete. O que significa que se eu fosse cachorro eu teria pouco mais de dez. Mas, enfim, não sou cachorro, embora já tenha me passado pela cabeça ter um. Dirigi-me, em seguida, ao banheiro, um percurso que já me parecera menos longo, em outros tempos. As sandálias, como que presas ao piso, crepitavam num barulho rouco e preguiçoso. Fixei o olhar em meu reflexo no espelho do banheiro, enquanto escovava os dentes carcomidos pelos anos: a face límpida de outrora deu lugar a uma aparência descuidada, assumo, com a barba por fazer e os cabelos desgrenhados.

De volta à sala, passei os olhos pelos nomes presentes na lista de convidados. O nome de Vera é acompanhado por um generoso in memoriam em letras garrafais e douradas, como certamente não foram seus últimos dias: há alguns anos, foi consumida por um câncer desses que já aparecem em estado terminal. Posso me lembrar com clareza de como estava vestida quando a vi pela primeira vez, sentada ao fundo do bonde que partia do bairro das Laranjeiras e ia costurando a cidade. Miúda, do lado esquerdo, lendo alguma coisa, talvez Oscar Wilde ou Rimbaud (lembro de ter me recitado graciosamente L’Éternité em algum de nossos encontros amorosos no meu apartamento, ao som do saxofone de Charlie Parker), vestia uma saia que não lhe permitia mostrar as belas coxas que cultivava, e que tive a honra de conhecer como até então ninguém conhecera; uma blusa que lhe desenhava com clareza sua silhueta e lhe deixava nus os ombros. Seu olhar atencioso passeava sereno por entre as páginas, enquanto o mundo girava desapercebido. Não sei se por dois minutos ou duas horas – nesses momentos, o tempo parece ser destituído de qualquer matéria ou lógica e passa a ser uma entidade de caráter contemplativo – me postei ali, a meditar diante da ternura destilada por aquela pequena. Conservou a mesma graciosidade até seu último alento; até que sua morte se abatesse sobre minha carne e minha alma.

Numa avaliação breve desses 50 anos, penso que o único saldo positivo talvez esteja na minha conta bancária – que não é tão farta, mas me permite uma vida razoável, sem os percalços que acometem a maioria dos aposentados. Ainda assim não tenho quaisquer luxos, sou um homem de hábitos simples – da mesa solitariamente posta ao meio dia, à cama de solteiro cuidadosamente arrumada para minhas noites de insônia e viuvez, tenho minha rotina rigorosamente regrada, não por disciplina ou organização, mas pelo vazio que impera em meus sentidos e em minhas horas e que me faz ter a certeza de que o dia terminou; pela ausência que me foi imposta e sobre a qual se edificou minha morada, minha vida.

Vesti um suéter enquanto procurava – um pouco às cegas devido à penumbra cultivada pelas persianas fechadas – um guarda-chuva: o jornal prometia um dilúvio. Meu aspecto de Noé conferia uma aura bíblica a uma curta caminhada até a padaria, a dois quarteirões de meu lar, amargo lar. Ainda tive tempo de ter ecoando em meu pensamento as memórias de minha falecida esposa, a quem devo todas as lembranças que remanescem em minha memória desses anos perdidos no tempo e no espaço, apagados pela conjunção de fatalidades que constituem minha vida; mutilados pela sentença de solidão perpétua que me foi proferida pelo destino.

Abro a porta, não sem empreender algum esforço. Hoje quando chegar em casa após meu passeio vespertino, vou me postar novamente diante do convite, dimensionar possibilidades, verificar data, local e hora; consultar novamente a lista, relacionar os nomes aos poucos rostos que ainda guardo em minha memória. Depois, então, vou cortar os cabelos, fazer a barba e vestir o paletó reservado para as grandes datas. Porque o tempo corre, eu sei, e logo também serei memória.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A viagem


O planejamento da viagem data de um tempo bem diferente, não tão distante; um ou dois meses atrás, se muito. Lúcia tratou, meticulosamente, de todos os pormenores referentes às passagens, hospedagem, roteiros, casas de câmbio, roupas de frio e discos de Carlos Gardel ou Astor Piazzola – com a pronúncia graciosamente puxada para o italiano. Acatei humildemente todas as suas resoluções para a viagem, em parte porque meu trabalho no escritório não me permitia muitas horas vagas, em parte porque me agradava ver Lúcia assim autônoma e ocupada, a despeito de sua secular incapacidade de atravessar sozinha uma avenida mais larga ou pagar quaisquer de nossas contas no banco.

Mas isso foi antes – como eu já disse. Foi quando, num lampejo súbito de sei lá o que, num poço de cólera e cansaço sepultou nosso quase-casamento e em cuja lápide rabiscou qualquer coisa sobre rotina, não me lembro agora; em seu jardim, não nascerão flores, que não exalarão perfume de flor de almíscar, não serão regadas pela chuva nem pelas lágrimas que, torrencialmente, não desabarão sobre elas. Gritava; e disso é tudo o que me recordo.

A viagem, entretanto, ficara de pé como não ficaram meus ossos. Malas arrumadas, no dia marcado, parti em direção ao aeroporto. Estava lá: esguia, talvez com uns quilos a mais dos que seus inexoráveis 60kg, um cigarro apagado balançando entre os dedos finos, batendo os pés impacientemente contra o piso, o pescoço enlaçado por um cachecol, como que já esperando pelo frio que também a aguardava, silenciosamente, em Buenos Aires. Não lembro com clareza se chegou a me cumprimentar: reclamou da barba por fazer e da minha pouca bagagem, sem esconder um riso contido, enquanto eu lentamente desfalecia a cada sílaba que lhe fugia da língua e me golpeava, ganhando matéria incandescente dentro dos meus ouvidos.

Caminhamos juntos até o avião onde, lado a lado e por algumas horas, comungaríamos do mesmo ar rarefeito. Falou, pausadamente, que conseguira transferir minha hospedagem para um hotel a algumas quadras do local em que, inicialmente, nos acomodaríamos – e onde agora ela reinaria absoluta em seu leito não mais conjugal. Consenti. Mostrou-me mapas, mudanças de planos, exposições de arte, praças, cafés, livros de fotografia, luvas de inverno, guias práticos sobre como aprender o espanhol com desenvoltura em alguns minutos, revistas especializadas em culinária argentina – tudo isso antes que o avião pudesse mover seus pés sobre o solo e desprender-se num vôo tímido e suave.

Os fones no ouvido mantinham-na num transe permanente, passeando serena por entre as nuvens, desafiando serafins e toda a hierarquia dos anjos. Lamento não servirem uísque nos vôos diurnos, Lúcia abre um sorriso, lamenta algumas coisas não mudarem nunca. Saboreia com igual simpatia cada uma das páginas da revista que lê, celebridades no Taiti, desabrigados na Ásia, atentados no Oriente Médio, relançamento da obra de Hemingway em Paris. A aeromoça anuncia pouso para a troca de aviões em algum lugar que, a essa altura, não faz a menor diferença. Descemos. Vou ao banheiro, digo a ela.

Os aeroportos são iguais em qualquer parte do mundo, tanto faz estar em Tóquio ou em Madrid. Tão logo chego ao toalete, os auto-falantes internos do aeroporto avisam embarque imediato, portão 20. Penso em voltar, me oferecer para carregar sua bagagem de mão, seus livros de culinária, luvas, mapas, revistas, quem sabe carregá-la, Lúcia, com seus 60 e poucos quilos bem distribuídos, segurar com toda força seu braço, arriscar um beijo. Não.

Passei em frente a uma livraria; ao longe, Lúcia me fez um sinal enquanto sumia através do portão de embarque. Segunda chamada. Pensei em filhos, pescaria com netos que teriam medo de lagartas de fogo, Lúcia espreguiçada sobre a cadeira onde faria bordados, almoços de domingo. Pensei, por último, em Buenos Aires, com seu tango e seu falso ar europeu.

Última chamada. Corri, soltei a bagagem de mão e simplesmente corri, corri, corri, não sei por quanto tempo, corri como quem não deseja chegar, como quem parte, talvez tenha fugido, corri como que estilhaçado em pequenos fragmentos de mercúrio, morri como quem corre, como quem não corre, como quem valsa, como quem anseia por não chegar a lugar algum.

Peguei um táxi em frente ao saguão do aeroporto. Ainda tive tempo de ver, pelo retrovisor do carro, a imagem do pássaro de concreto decolando para, só então, se perder na imensidão azul do céu.