Fausto se movia pelos corredores de seu apartamento, como que procurando as idéias em qualquer canto escondido da casa, debaixo de um tapete, por entre os pratos, atrás das cortinas. O apartamento era espaçoso, de dimensões largas o suficiente para alguém sobre cujas costas não recaíam as responsabilidades de abrigar uma companheira, um parente ou sequer um cão. A sala de estar se desenhava firme no centro da casa distinguindo-se pelo seu minimalismo – uma mesa de vidro com quatro cadeiras dispostas de maneira quase desordenada; à esquerda, as persianas pendiam, marrons, pelo contato com a claridade, sobre a janela. Passeava ele, inquieto, por entre os ambientes, estalando os dedos como quem anseia por uma epifania.
Então punha-se em meditação sobre a janela, esperando que a qualquer momento uma combinação astral ou qualquer movimentação na rua lhe incutisse o desfecho que deveria ter o livro que há alguns meses escrevia. Pensou, por um instante, em Maria Lúcia. Não fosse tarde – e sabendo dos hábitos absolutamente regrados de sua companheira – faria uma ligação, talvez ajudasse a espairecer a mente. Maria Lúcia lhe dedicava visitas regulares, sempre aos fins de semana, quando dividiam apartamento, quarto, respiração; dividiam seus espaços interiores, chego às vezes a acreditar que eram um só, quando consumidos por uma espécie de febre embriagante, se dispunham de uma maneira tal que aos olhos menos atenciosos seria difícil precisar onde começam e terminam seus contornos individuais.
Ouviu, então, um ruído surdo vindo de qualquer lugar na cozinha, algo como o som de uma porta fechando amortecida. Deslizou por entre móveis até mapear de onde vinha o som, agora constante. O impacto da visão chegou, por um momento, a assombrar: sentada absorta no chão da dispensa, desnuda, parecia uma criança bem alimentada, não obstante devorasse indiscriminadamente páginas de um jornal antigo. Não possuía sexo que a distinguisse, de modo que parecia pertencer a qualquer uma dessas ordens angelicais. Mantinha a cabeça baixa, absolutamente concentrada em sua tarefa, sem desviar a vista por um segundo que fosse, não percebendo sequer o observador que um pouco adiante espiava, incrédulo, seus movimentos . Apesar de apressados, seus gestos não escondiam alguma inocência, e não havia ali qualquer consciência do errado. Página após página, o jornal desceu garganta abaixo e antes que Fausto pudesse perceber, já não havia ali nada senão silêncio.
Na noite que se seguiu, procedeu cerimoniosamente como tratasse de um ritual: empilhou alguns jornais sobre o tapete da dispensa, deixando a porta encostada para que pudesse entrar – embora, em verdade, não acreditasse que aquela criatura utilizasse de quaisquer métodos ortodoxos para chegar ali. Dirigiu-se ao quarto, em seguida, e embora as idéias lhe incorressem desordenadas, pôde escrever algumas páginas antes que os ruídos denunciassem a chegada de seu mais novo inquilino.
O terceiro dia de visitas reservava algumas novidades. Foram necessários menos de 10 minutos – tempo que Fausto precisou para buscar algumas correspondências na portaria do edifício – para que toda a sessão de Literatura Inglesa de sua biblioteca fosse devorada, de Joyce a Shakespeare, tudo o que restou foi um fino exemplar de Allan Poe, casualmente esquecido por entre autores latino-americanos. Não tardou, porém – ainda que tivesse, inutilmente, trancado a sala com todas as chaves e trancas possíveis – para que todos os Nerudas e Cortázares enveredassem pelo mesmo esôfago. A avidez com que tudo aquilo fora consumido sugeria que, a partir de então, o trabalho não era mais executado individualmente, mas por vários deles que, em frenesi, faziam de cada cômodo um imenso refeitório.
Foi quando se espalharam por toda a casa, suas visitas já não constituíam discretas aparições sobre o chão empoeirado da dispensa. Estavam em toda parte agora, intermitentemente, saciando a loucura com fotos antigas, certidões de nascimento, documentos de identidade, diplomas, dicionários, listas de compras, devoraram todo o dinheiro laboriosamente economizado e guardado dentro de envelopes, posteriormente também digeridos. Uivavam, em gozo, enquanto se esquivavam pelos corredores à procura de um pedaço de delírio. E então o encontravam em cartas que ou o apreço conservou, ou que a falta de coragem silenciou. Comeram, finalmente, cada uma das páginas que, amontoadas sobre a escrivaninha, – entre rascunhos e versões definitivas – davam matéria e espessura ao romance que, terminado, se lançava como único registro a unir o tempo presente a algum passado agora desconhecido.
Telefonou para Maria Lúcia, disse que não viesse essa noite. Suas mãos tremiam, enquanto, em meio à devastação, tentava levar, sem êxito, uma colher de sopa à boca.
3 comentários:
e você atualizou, com êxito, este blog. e de maneira sensacional, luli! gostei demais
incrível. seu retrato de desespero ou desalento... realístico, envolvente. acho que uma boa escrita ultrapassa a descrição, ela transmite sensações, de fato.
colérico.
(no bom sentido - dá pra imaginá-lo, né?)
Enfim,
terá continuação?
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