“Tudo o que consigo pensar é que, durante o eclipse, provavelmente até os sentimentos ficarão parados". (Michelangelo Antonioni)
Sabia que era a última vez em que nos veríamos. Nada que houvesse sido combinado ou conversado, nenhuma despedida arranjada. Não haveria despedida, embora se soubesse uma despedida. Não haveria adeus embora se soubesse o adeus encerrado em cada um dos gestos, na ausência das palavras, no cansaço, o adeus. Não se tratava do fim assinado em contratos, divórcios, ratificado em segundas vias; era, antes de tudo, o fim escrito nas faces devastadas, no amor mal-feito, o fim sem endereço.
Marie ela se chama. Tem o semblante altivo disfarçado pelos traços recatados de seu rosto, os cabelos negros que pendem na altura dos ombros, emoldurando-lhe a face alva; se ergue por sobre pernas longas, costas em que posso notar tracejadas cada uma de suas vértebras e um ventre que sempre me negou filhos. Tudo em Marie é assim: em aço e dor, uma construção imponente, orgulhosa; cheia de si, de sua decadência, da solidão intolerável que ostenta nos olhos.
Posso ver com nitidez o exato momento em que Marie abre a porta de minha casa com cópia da chave que possui. Vejo me abraçar, despir-se logo em seguida, sem pronunciar uma só palavra. Afasto suas pernas com meus joelhos, pressiono seu tórax contra o meu, enquanto se ajusta anatomicamente dentro da cama de solteiro. Posso vê-la acoplada à minha cintura – como uma extensão de mim – enquanto, repetidamente, desmorona e se reergue sobre meu corpo; contrai, distende cada um de seus músculos agora exaustos. Seus movimentos têm ritmo, cadência e, embora desafiem princípios da física, metafísica, lógica, retórica, gramática, posso sempre prever o próximo movimento, como posso sentir seu perfume adocicado envolver o espaço, preenchendo e violentando seus intervalos mais curtos, entre uma respiração e outra.
Por alguns minutos, fica estendida, em fadiga, como um animal abatido. Então recompõe-se dentro de seu vestido azul-marinho com a mesma destreza com que dele se desfez. Passeia pelo quarto, procura por suas sandálias. Sei que não nos veremos mais, não como amantes. Tudo em Marie é assim: devastação. Não trocamos uma única palavra, não convém trocar. Caminha suavemente até a porta, pisando com os calcanhares descalços como não desejasse fazer barulho, calça as sandálias. Acena com a cabeça. Até a próxima é tudo o que diz. Não haverá próxima, eu sei e ela sabe, mas também não convém dizer. A essa altura, talvez toda a cidade saiba da nossa ruína, através do nosso silêncio ensurdecedor que corta a noite como uma navalha.
Sobre mim há pouco ou nada a dizer. Que importa meu nome, minha idade, a cor cinza de meus olhos? Não importa com o que trabalho, como ocupo minhas horas vagas, que jornal leio, minhas convicções políticas, se detesto cigarros, nada disso importa diante do fato de que há pouco Marie atravessou a porta à frente da qual me posiciono agora – ingenuamente esperando que volte, que bata à porta, diga que esqueceu as chaves e eu possa então arrastá-la novamente até a cama, possuí-la, esgotá-la, ordenar que fique.
Mas não acontecerá assim, não durante o eclipse. Então digo que vá, Marie, cuide para não adoecer nessa chuva, volte qualquer dia para um café, adeus.
8 comentários:
\o/
puta que pariu, luiz!!!!!! "cortante, amei" é tudo o que eu tenho a dizer.
puta que pariu, luiz :)
só tem um problema: eu fico sempre querendo mais =/
muito massa, cara.
nao é a toa que recebi duas indicações de teu blog de duas pessoas diferentes.
muito bonito.
" – como uma extensão de mim – "
Gostei muito, mas tenho dúvidas quanto a ele realmente querer que ela volte...
muito bom.
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