terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Tempestade

A tempestade sempre foi uma questão de tempo, é o que mamãe dizia. Temia-se porque se desconhecia, mas, no fundo, todos nós a esperávamos, como a esperaram nossos bisavós, nossos avós, nossos pais. Mamãe profetizava enquanto fumava um fedorento cigarro de palha, que exalava um odor acre por nossa casa e que seria capaz de se espalhar por toda a vizinhança se acaso algum desavisado sopro de vento tomasse de assalto as ruas abafadas e estreitas de Vila Olímpia.

Não se sabia se vinha para mal ou para bem, embora eu acreditasse que mamãe encontrava-se mesmo entre os que enxergavam nela propriedades purificadoras. Deitada na rede improvisada em frente ao quintal de casa, discorria sobre os dias e noites – conforme rezava a tradição – em que os céus desabariam num temporal jamais visto, e então não haveriam telhados capazes de suportar tamanha cólera e cada palmo de chão e terra seria lavado antes que, sobre eles, pudessem ser novamente erguidos os pés de Vila Olímpia.

A despeito disso, nada havia em nossos dias que não exalasse um bucolismo absolutamente peculiar, dias que se seguiam em um compassado, lento e interminável cortejo. As missas, às quartas-feiras e aos domingos, regulavam e resumiam a vida social de Vila Olímpia, tecida por sobre a onisciência de todos nós sobre tudo o que acontecia – ou não acontecia, mais precisamente – na cidade. Então eram exaustivamente discutidos assuntos de toda natureza – da celebração do padre às traições da esposa do padeiro.

Atrás de igreja, um descampado se estendia para além das montanhas. Era o local onde, na época, eu e as outras crianças soltávamos pipas que se elevavam até onde eu supunha ser o céu. Um dia trovejou alto, dizia-se que importunávamos os céus com nossas pipas coloridas e que viria então a tempestade e todos se recolheram em suas casas e pusemo-nos a rezar longos terços e as mães a lamentar os filhos e os filhos a lamentar as pipas, que lamentavam o céu negado. Mas a tempestade não veio. A partir desse dia, então, trocamos nossas pipas pela brincadeira de bola e, posteriormente, por peões que nós mesmos fabricávamos com a madeira que sobrava da marcenaria.

A mocidade se revelou indócil para com meus planos de estudar leis na capital, diplomar-me advogado como fizeram alguns em Vila Olímpia – os que tomaram promissor o caminho dos trens ao invés do paralítico e impermanente caminho dos rios. Mamãe logo adoeceu dos rins me revogando o direito aos estudos, e dediquei-me a trocar-lhe os curativos duas vezes ao dia – pela manhã e à noite – além de fazê-la tomar os remédios que, não raro, ela obstinadamente se negava a ingerir. Repetia para si mesma, como um mantra, que se aproximava a tempestade, durante os anos que lutou contra a doença que aos poucos lhe consumiu também o fígado, o pâncreas, e os pulmões. Troquei os livros pelo cimento infiltrado nas unhas, pela cal descascada das paredes a me disfarçar a pele queimada de sol, por essa terra seca e estéril que cada vez mais acredito amaldiçoada.

Nunca deixei de pensar em nossa tempestade, nem mesmo quando mamãe e os outros antigos de Vila Olímpia morreram e então assunto foi progressivamente se diluindo na memória coletiva. Nem mesmo quando nasceu Moisés, meu menino, reabilitando o incessante ciclo de morte e vida a que estamos eternamente subjugados.

Hoje espero ainda que venha a mim – com vista minguante e cansada de ver nascer e morrer mais de sessenta primaveras, com os dedos incorrigivelmente feridos e os braços fadigados de empunhar enxadas e pás, com os lábios rachados e a boca seca pela ausência que a tempestade causou em meus dias. A tempestade é o contrário da vida. Sei que chega e não posso me furtar a adivinhar-lhe o cheiro de sal; sei que chega – como se antevê um adversário pelo silêncio, como se anuncia o temporal pela calmaria.

Deitado nesta cama, o nariz a expelir o sangue quente que, creio, será lavado assim que suas águas limpas vierem, aguardo que me leve, de braços abertos, peito inflado e de olhos fechados para que eu a imagine da maneira que melhor me convém.

Sereno, aguardo meu dia.

7 comentários:

tchuly disse...

poxa, luli. tu demora pra postar, mas sempre que coloca alguma coisa, vale a pena ler. vila olímpia existe?!

Unknown disse...

Superou o que eu achava que seria insuperável, visse?!
Amei mesmo! =)

Thaís Salomão disse...

a tua forma de metaforizar é tão sutil, mas tão sutil, que a gente só vai perceber a metáfora bem no finalzinho mesmo :)

parabéns, ficou lindo :)

Unknown disse...

li novamente e achei mais lindo hoje!

Anônimo disse...

Que bom poder navegar e ler coisas interessantes como no seu blog.Gostei - parabéns.Eu amo escrever - mas tem gente que tem talento!

Bernardo Sampaio disse...

mt bom. esse tem algo de uma descrição detalhada e uma sensibilidade mt boa. gostei cara.

Rafael Sotero disse...

boiola!