quinta-feira, 3 de julho de 2008

A viagem


O planejamento da viagem data de um tempo bem diferente, não tão distante; um ou dois meses atrás, se muito. Lúcia tratou, meticulosamente, de todos os pormenores referentes às passagens, hospedagem, roteiros, casas de câmbio, roupas de frio e discos de Carlos Gardel ou Astor Piazzola – com a pronúncia graciosamente puxada para o italiano. Acatei humildemente todas as suas resoluções para a viagem, em parte porque meu trabalho no escritório não me permitia muitas horas vagas, em parte porque me agradava ver Lúcia assim autônoma e ocupada, a despeito de sua secular incapacidade de atravessar sozinha uma avenida mais larga ou pagar quaisquer de nossas contas no banco.

Mas isso foi antes – como eu já disse. Foi quando, num lampejo súbito de sei lá o que, num poço de cólera e cansaço sepultou nosso quase-casamento e em cuja lápide rabiscou qualquer coisa sobre rotina, não me lembro agora; em seu jardim, não nascerão flores, que não exalarão perfume de flor de almíscar, não serão regadas pela chuva nem pelas lágrimas que, torrencialmente, não desabarão sobre elas. Gritava; e disso é tudo o que me recordo.

A viagem, entretanto, ficara de pé como não ficaram meus ossos. Malas arrumadas, no dia marcado, parti em direção ao aeroporto. Estava lá: esguia, talvez com uns quilos a mais dos que seus inexoráveis 60kg, um cigarro apagado balançando entre os dedos finos, batendo os pés impacientemente contra o piso, o pescoço enlaçado por um cachecol, como que já esperando pelo frio que também a aguardava, silenciosamente, em Buenos Aires. Não lembro com clareza se chegou a me cumprimentar: reclamou da barba por fazer e da minha pouca bagagem, sem esconder um riso contido, enquanto eu lentamente desfalecia a cada sílaba que lhe fugia da língua e me golpeava, ganhando matéria incandescente dentro dos meus ouvidos.

Caminhamos juntos até o avião onde, lado a lado e por algumas horas, comungaríamos do mesmo ar rarefeito. Falou, pausadamente, que conseguira transferir minha hospedagem para um hotel a algumas quadras do local em que, inicialmente, nos acomodaríamos – e onde agora ela reinaria absoluta em seu leito não mais conjugal. Consenti. Mostrou-me mapas, mudanças de planos, exposições de arte, praças, cafés, livros de fotografia, luvas de inverno, guias práticos sobre como aprender o espanhol com desenvoltura em alguns minutos, revistas especializadas em culinária argentina – tudo isso antes que o avião pudesse mover seus pés sobre o solo e desprender-se num vôo tímido e suave.

Os fones no ouvido mantinham-na num transe permanente, passeando serena por entre as nuvens, desafiando serafins e toda a hierarquia dos anjos. Lamento não servirem uísque nos vôos diurnos, Lúcia abre um sorriso, lamenta algumas coisas não mudarem nunca. Saboreia com igual simpatia cada uma das páginas da revista que lê, celebridades no Taiti, desabrigados na Ásia, atentados no Oriente Médio, relançamento da obra de Hemingway em Paris. A aeromoça anuncia pouso para a troca de aviões em algum lugar que, a essa altura, não faz a menor diferença. Descemos. Vou ao banheiro, digo a ela.

Os aeroportos são iguais em qualquer parte do mundo, tanto faz estar em Tóquio ou em Madrid. Tão logo chego ao toalete, os auto-falantes internos do aeroporto avisam embarque imediato, portão 20. Penso em voltar, me oferecer para carregar sua bagagem de mão, seus livros de culinária, luvas, mapas, revistas, quem sabe carregá-la, Lúcia, com seus 60 e poucos quilos bem distribuídos, segurar com toda força seu braço, arriscar um beijo. Não.

Passei em frente a uma livraria; ao longe, Lúcia me fez um sinal enquanto sumia através do portão de embarque. Segunda chamada. Pensei em filhos, pescaria com netos que teriam medo de lagartas de fogo, Lúcia espreguiçada sobre a cadeira onde faria bordados, almoços de domingo. Pensei, por último, em Buenos Aires, com seu tango e seu falso ar europeu.

Última chamada. Corri, soltei a bagagem de mão e simplesmente corri, corri, corri, não sei por quanto tempo, corri como quem não deseja chegar, como quem parte, talvez tenha fugido, corri como que estilhaçado em pequenos fragmentos de mercúrio, morri como quem corre, como quem não corre, como quem valsa, como quem anseia por não chegar a lugar algum.

Peguei um táxi em frente ao saguão do aeroporto. Ainda tive tempo de ver, pelo retrovisor do carro, a imagem do pássaro de concreto decolando para, só então, se perder na imensidão azul do céu.

8 comentários:

Unknown disse...

Que texto!

Luísa Ferreira disse...

eu realmente nao fui nada enfatica ao expressar minha opiniao no msn; nao "gostei", gostei MUITO :)

tchuly disse...

me orgulho tanto dos meus amigos que têm dons poéticos e artísticos. sinto inveja também, mas inveja boa, sabe? porque quando você lê o texto do outro, aprecia. se fosse meu, eu não daria valor. enfim, resumindo o que eu achei: fuderoso, luli!

cecília disse...

uau!
sério, a gente pensa que as pessoas que tão perto da gente todo dia não fazem coisas deste tipo. aí quando eu vejo algo assim, fico surpreendida positivamente. muito.

Rafael Sotero disse...

a gelra tá falando aki mto xeoi das frescuras! eu digo logo é q tá do carai!

ae!

Marina Moura disse...

A luta da memória contra o esquecimento. Por isso ele corre, corre em busca dos estilhaços, como quem não corre...

lindo, Luiz.
lindo.

:)

Camie disse...

genial...

Unknown disse...

ratifico rafael: tá do carai! =))