Sou um homem amargo. A viuvez e o falecimento de meus dois filhos em um acidente de trânsito motivaram minha reclusão. Não saio de casa com freqüência. Meus passeios se resumem ao transcurso diário à padaria ao fim da tarde, onde compro o jornal e tomo café. Vez por outra um maço de cigarros, embora reconheça, como médico, que o hábito é extremamente desaconselhável. Não dirijo. Não porque minha idade já não permita – fiz uma cirurgia de catarata há alguns meses. A vida é pródiga em seus ensinamentos: a velocidade é jovem e não me cabe, portanto, contrariá-la. Um homem da minha idade deve evitar correr riscos. Sei que a descrença não cai bem em alguém que já vive o epílogo de seus dias, mas às vezes acredito que Deus joga dados.
Larguei o convite sobre a mesa da sala, como se esperasse por meu veredicto, e pus-me a ler o jornal de ontem – já tão aposentado quanto eu – como geralmente faço após as refeições. Tenho uma pilha de jornais velhos na terceira gaveta, de cima pra baixo, da minha mesa de cabeceira. Talvez devesse os dar a algum mendigo ou pra alguém que tenha cachorro. Há algo curioso sobre os cães: dizem que para se ter a idade de um cachorro correspondente a de um humano, basta multiplicar por sete. O que significa que se eu fosse cachorro eu teria pouco mais de dez. Mas, enfim, não sou cachorro, embora já tenha me passado pela cabeça ter um. Dirigi-me, em seguida, ao banheiro, um percurso que já me parecera menos longo, em outros tempos. As sandálias, como que presas ao piso, crepitavam num barulho rouco e preguiçoso. Fixei o olhar em meu reflexo no espelho do banheiro, enquanto escovava os dentes carcomidos pelos anos: a face límpida de outrora deu lugar a uma aparência descuidada, assumo, com a barba por fazer e os cabelos desgrenhados.
De volta à sala, passei os olhos pelos nomes presentes na lista de convidados. O nome de Vera é acompanhado por um generoso in memoriam em letras garrafais e douradas, como certamente não foram seus últimos dias: há alguns anos, foi consumida por um câncer desses que já aparecem em estado terminal. Posso me lembrar com clareza de como estava vestida quando a vi pela primeira vez, sentada ao fundo do bonde que partia do bairro das Laranjeiras e ia costurando a cidade. Miúda, do lado esquerdo, lendo alguma coisa, talvez Oscar Wilde ou Rimbaud (lembro de ter me recitado graciosamente L’Éternité em algum de nossos encontros amorosos no meu apartamento, ao som do saxofone de Charlie Parker), vestia uma saia que não lhe permitia mostrar as belas coxas que cultivava, e que tive a honra de conhecer como até então ninguém conhecera; uma blusa que lhe desenhava com clareza sua silhueta e lhe deixava nus os ombros. Seu olhar atencioso passeava sereno por entre as páginas, enquanto o mundo girava desapercebido. Não sei se por dois minutos ou duas horas – nesses momentos, o tempo parece ser destituído de qualquer matéria ou lógica e passa a ser uma entidade de caráter contemplativo – me postei ali, a meditar diante da ternura destilada por aquela pequena. Conservou a mesma graciosidade até seu último alento; até que sua morte se abatesse sobre minha carne e minha alma.
Numa avaliação breve desses 50 anos, penso que o único saldo positivo talvez esteja na minha conta bancária – que não é tão farta, mas me permite uma vida razoável, sem os percalços que acometem a maioria dos aposentados. Ainda assim não tenho quaisquer luxos, sou um homem de hábitos simples – da mesa solitariamente posta ao meio dia, à cama de solteiro cuidadosamente arrumada para minhas noites de insônia e viuvez, tenho minha rotina rigorosamente regrada, não por disciplina ou organização, mas pelo vazio que impera em meus sentidos e em minhas horas e que me faz ter a certeza de que o dia terminou; pela ausência que me foi imposta e sobre a qual se edificou minha morada, minha vida.
Vesti um suéter enquanto procurava – um pouco às cegas devido à penumbra cultivada pelas persianas fechadas – um guarda-chuva: o jornal prometia um dilúvio. Meu aspecto de Noé conferia uma aura bíblica a uma curta caminhada até a padaria, a dois quarteirões de meu lar, amargo lar. Ainda tive tempo de ter ecoando em meu pensamento as memórias de minha falecida esposa, a quem devo todas as lembranças que remanescem em minha memória desses anos perdidos no tempo e no espaço, apagados pela conjunção de fatalidades que constituem minha vida; mutilados pela sentença de solidão perpétua que me foi proferida pelo destino.
3 comentários:
porra, luiz! vai te fuder! mto bom!
já nem sei mais o que dizer, visse?! ainda assim, digo: sou sua leitora intermitente! =)
mantendo o nível hein!
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